Associados e Apoiantes

1.ª SESSÃO: Desafios da globalização

18 de Setembro de 2023

9h30, Fundação Calouste Gulbenkian, Avenida de Berna, em Lisboa.

Realizou-se a 1.ª SESSÃO: Desafios da globalização, integrada no ciclo de sessões da Participar + sob o tema: “A Fragilidade das Instituições Democráticas em Portugal”. Numa era em que o mundo enfrenta desafios sem precedentes, decorrentes da globalização e das rápidas transformações tecnológicas, é imperativo que nos questionemos sobre a solidez das nossas instituições democráticas e a sua capacidade de se adaptarem a estes novos cenários.


Realizado no prestigioso Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian, na Avenida de Berna em Lisboa, este evento reuniu alguns dos maiores pensadores e líderes do nosso tempo. O objetivo passou por fomentar uma discussão rica e informada sobre os temas que moldam o nosso futuro coletivo, com especial foco nos desafios da globalização.


O programa foi cuidadosamente elaborado para oferecer uma visão abrangente, desde a preservação do ambiente até à evolução da demografia, passando pelas transformações trazidas pela inteligência artificial e os avanços da ciência.


A conferência começou com as calorosas boas-vindas de Guilherme Oliveira Martins, da Administração Calouste Gulbenkian, seguido da apresentação da iniciativa por Vitor Ramalho, o Presidente da Direção da Associação da Participar+. Francisco Pinto Balsemão, uma voz influente no cenário português, abriu oficialmente a discussão com a sua intervenção de abertura.


As sessões foram moderadas por João Ferreira do Amaral e Paula Franco, garantindo um debate interativo e construtivo após as intervenções de especialistas renomados. O evento culminou com palavras finais de Melo Gomes, um dos fundadores da Participar+, seguido de reflexões finais pela Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral.


Programa

18 de setembro

auditório 2 | Fundação Calouste Gulbenkian, Avenida de Berna, em Lisboa.


9h30 | Receção dos participantes

10h15 | Apresentação da Administração Calouste Gulbenkian

Guilherme Oliveira Martins


10h30 | Breve apresentação da iniciativa, Vitor Ramalho,

Presidente da Direção da Associação da Participar +


10h45 | Intervenção de abertura, Francisco Pinto Balsemão


11h15| 1.º PAINEL:

Moderação: João Ferreira do Amaral

Intervenções de José Carlos Matos, “Ambiente”

Ana João Sepúlveda, “Envelhecimento e Demografia “


Debate


(intervalo para almoço das 13h às 14h30)


14h45 | 2.º PAINEL:

Moderação: Paula Franco

Intervenções de Arlindo Oliveira, “Inteligência Artificial”

Maria do Carmo Fonseca, “Ciência”


Debate


(intervalo para café das 17h às 17h30)


17h45 | Intervenção final. Melo Gomes, Fundador da Participar +


18h00 | Sessão de encerramento. Maria Lúcia Amaral,


Provedora de Justiça

A sessão que teve lugar na Gulbenkian " Desafios da Globalização" ultrapassou as expetativas comparecendo mais do que os 180 inscritos e a excelência das intervenções mereceram rasgados elogios suscitando profundas reflexões. A confirmarem-no damos conta de 3 artigos de entre os que foram publicados e foi possível desde já divulgar as intervenções de Vítor Ramalho e Francisco Pinto Balsemão


Tal como nas outras iniciativas a Associação Participar+ vai editar em caderno a que ocorreu no passado dia 18/9 e inserirá as demais nesta plataforma mal tenha em sua posse os documentos escritos 


Intervenção VITOR RAMALHO Intervenção FRANCISCO PINTO BALSEMÃO
  • Política Internacional (3)

    1. ANGOLA NÃO PODE “DESCONSEGUIR”


    Os quarenta e cinco anos da independência de Angola foram marcados por uma grande influência exterior.


    Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA e a ex-URSS sustentaram, por razões diferentes, o direito dos povos coloniais à autodeterminação e à independência.


    Os propósitos hegemónicos de ambas cedo as conduziram a um confronto político na Europa e militar noutros Continentes por interpostos agentes.


    Os partidos entretanto constituídos em África passaram a ser apoiados por uma ou outra mas nunca desinteressadamente.


    Os EUA apoiaram a FNLA e, com ela, aliados africanos, como o ex-Zaire de Mobutu.

    O MPLA, embora com intermitências, foi apoiado pela ex-URSS que reforçou esse apoio perto da independência, a prenunciar um conflito de grande intensidade. 


    À data da independência, outro partido constituído em 1965, a UNITA, sob direção de Savimbi, haveria de se afirmar política e militarmente com muito maior força que a FNLA.

    Savimbi sustentava que na luta armada os dirigentes deviam estar no interior do país, e para se consolidar, aplicava a frase adotada pelo dirigente chinês Deng Xiaoping, “Não importa se o gato é preto ou branco, o importante é que cace ratos”.


    Na prática, a UNITA acabaria a ser o partido que, para se opor ao MPLA, estabeleceria taticamente acordos com o regime do apartheid da África do Sul e acabaria por beneficiar do reforço dos EUA.

    A guerra colocou, frente a frente, por estes interpostos agentes, as duas superpotências e com a “vitória” da ex-URSS, em Angola, impôs-se um regime de partido único com o Estado decalcado sobre o modelo soviético, a economia planificada e as liberdades individuais cerceadas.

    A guerra acabaria por marcar a sorte de Angola até 2002.


    Outro destino teria tido o país se os dirigentes, particularmente do MPLA, tivessem rejeitado a tenaz.


    Estes 27 anos de guerra marcaram este período e influenciaram o que se seguiu com a Perestroika, com sucessivos processos de paz a serem adiados até fevereiro de 2002.


    Um conflito com estas proporções, envolvendo recursos avultadíssimos, foi internamente alimentado pelo MPLA e governo, pela exploração do petróleo que os dirigentes admitiram continuar sempre em valores elevados, propiciando vantagens ilegítimas e instalando a corrupção.


    O 27 de Maio veio pôr a nu os efeitos de uma conceção desumana do poder, sendo dele vítima o povo angolano.


    A sucessão de Agostinho Neto recaiu num jovem engenheiro que, por isso mesmo, se presumiu ser uma personalidade transitória.


    A sua maneira de ser reservada e distante, aliada à gestão que imprimiu no equilíbrio de forças dentro do seu próprio partido, acabaria por o fazer impor.

    Em novembro de 1989 o bloco soviético implode e Eduardo dos Santos intui que os ventos estavam a soprar de outra feição.


    Foi ao Zaire apertar a mão a Savimbi, contribuindo para o início do processo de paz, preparando o repatriamento do contingente cubano e a saída dos sul-africanos.


    A reconfiguração da África Austral concretizou-se com eleições na Namíbia, a resolução da situação no Zimbabwe, a inevitável libertação de Mandela e o desmantelamento do apartheid.


    Era natural que o processo de paz conduzisse à desejada reconciliação dos angolanos, iniciando em Bicesse, que coincidiu com o 1.º Congresso dos Quadros Angolanos no Exterior, cuja importância, documentalmente provada não está tratada, e do qual tive a honra de ser coorganizador, como angolano e português que sou. 


    O processo de paz correu paredes meias com a revisão constitucional e a abertura democrática.

    É distorção não reconhecer o papel de Eduardo dos Santos na construção da paz, e com ele a ulterior integração da UNITA, na vida política e militar angolana, até ao acordo de 2002, ano que, com uma conjuntura desfavorável a Savimbi, o vitimou.


    Após 2002, Eduardo dos Santos, o MPLA e o governo, alicerçaram o desenvolvimento económico sem alteração do paradigma existente, continuando o orçamento de Estado a depender do petróleo.

    A alegada diversificação da economia, que exigia uma administração mais eficaz que atacasse as causas da corrupção, não teve lugar.

    A continuação deste estado de coisas não era aceitável pela comunidade internacional que fez sentir a exigência da substituição de Eduardo dos Santos.


    Consciente da longevidade do poder e que já não era possível inverter a situação, não teve outra solução que não fosse a que tomou – não se candidatar a um novo mandato. 

    Sendo inevitável foi e não foi uma surpresa a indigitação do sucessor.


    Foi surpresa se tivermos em atenção que Eduardo dos Santos havia substituído João Lourenço no cargo de Secretário-Geral do MPLA, por Dino Matross. 


    Não foi uma surpresa, se pensarmos que uma transição desta natureza seria melhor salvaguardada com um militar da geração seguinte à dos “mais velhos” e, no caso, pelo Ministro da Defesa.


    A eleição de João Lourenço decorreu sem incidentes, com reconhecimento da comunidade internacional, tendo o candidato defendido a luta contra a corrupção, a diversificação da economia e a adoção de mecanismos que não prescindissem de uma maior e diversificada abertura ao mundo.


    A promessa de criação de milhares de empregos cedo se confrontou com a grave debilidade financeira do Estado, com os bancos em situação pré-falimentar e grande carência de divisas.

    As respostas políticas que o Presidente foi dando, numa situação muito complexa, não geraram unidade de pensamento no MPLA e no próprio executivo, com nomeações e alterações permanentes, agravando o descontentamento social induzido pelo desemprego, de que as mais recentes manifestações são reflexo.


    A pandemia da Covid-19, que aumentou muito a quebra da atividade económica, só poderia agravar este quadro, expondo ainda vulnerabilidades que já vinham de trás.

    A situação tornou-se ainda mais complexa, não sendo fácil conceber e executar um plano estratégico que responda ao atual estado das coisas.


    Perante as grandes dificuldades existentes, fortemente agravadas com a pandemia, a margem de manobra de Angola passou a ser menor.

    É importante que Angola alcance, no curto prazo, moratórias da dívida externa com prazos dilatados, para que as verbas disponíveis possibilitem serem afetadas em investimentos reprodutivos.


    Numa primeira fase, há que privilegiar o setor primário para a autossustentabilidade do país, cuidando seriamente da questão social.

    Estas prioridades são, porém, insuficientes se a máquina da administração pública não reforçar a eficiência, fundamental para que os investidores reganhem confiança no país.

    Há ainda que olhar para as alianças e acordos a estabelecer neste quadro mundial multipolar, tendo presente a região geográfica em que se integra, a especificidade multicultural e multiétnica com uma cultura popular invulgar, cruzada com povos e países de língua oficial portuguesa a aprofundar quando o país, no segundo semestre do próximo ano, assumir a presidência da CPLP.


    Angola deverá ainda ter presente que o desenvolvimento não resulta das riquezas naturais que possui mas da capacidade em as transformar, princípio este que a conduz a ter de subordinar a economia à política com estratégia clara, os olhos postos no futuro e muita atenção à eficiência da administração.


    O país tem todas as condições para recriar a esperança no futuro e não pode, de forma alguma, “desconseguir”, uma vez que tem tudo o que é necessário para alcançar a melhoria de bem-estar do seu povo.


    Vítor Ramalho


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    2. PORTUGAL NOS DESAFIOS AFRICANOS DE CURTO PRAZO


    Quando se referem respostas de curto prazo em África significa urgência. É deste patamar que vai depender a quebra do círculo vicioso da estagnação ou mesmo do recuo em diversos pontos, cujos efeitos anulam dados positivos anteriormente conquistados. O requisito principal nas definições de metas e mobilização de meios, decorre da existência ou não de governos decentes e sociedades civis ativas, sendo neste quadro que o apoio internacional se pode inserir. Sublinho apoio e não “cooperação” pois a palavra tomou significado pejorativo, seja por encobrir políticas que não trazem benéfico ao continente, seja por compreenderem de facto atividades empresariais de tipo normal e tradicional nas relações internacionais. Neste apoio externo, é condição essencial à criação do clima de confiança – hoje inexistente – a ausência de intenções de liderança ou relevo exagerado por parte dos parceiros externos. Na sessão inaugural de Participar + notou-se um constante recurso a expressões como “Portugal liderar” ou “Portugal ser sede”, idênticas, aliás, às usadas por outros países e em outros eventos onde se abordam questões de relacionamento “NorteSul”. Neste momento, a pandemia impõe a África uma dupla capacidade de gerir os riscos sem excluir a gestão dos ritmos de crescimento socio-económico. Apesar dos níveis baixos de infeções em África, as precauções têm os mesmos perfis e causam os mesmos efeitos do resto do mundo. Ao mesmo tempo, a lentidão no crescimento real – incluindo, portanto, a diversificação económica – é marcante desde sempre em quase todos os países africanos. As consequências de ritmos lentos são óbvias, sobretudo quando os pontos de partida já são baixos. Neste contexto, agravado por indefinições e escassa capacidade de previsão, o apoio externo útil a África está no mesmo ponto das iniciativas das sociedades civis africanas: visão geral da conjuntura, porém, possibilidade de execução centrada em ações pontuais. Ainda assim, estas ações devem ser portadoras de mudanças de atitute, tanto africanas quanto internacionais sobre África e, ao mesmo tempo, poderem inserir-se em políticas macro à medida que forem definidas. Em termos económicos e diplomáticos, a imagem de Portugal em África é vista como seguindo os mesmos critérios dos demais países. As grandes repercussões positivas também apresentam semelhanças com as outras ex potências coloniais: o desporto, sobretudo futebol, e a comunicação social ( canais África de rádio e televisão), aliás, com fortes ligações de audiência entre si e, de certa forma, as Escolas portuguesas ( como ponto de referência, não como de acesso por numero significativo de cidadãos dos Palop). As relações pessoais ou de grupo a nível cultural, têm envergadura relativa suficiente para impactar acima da maior parte das atividades diplomáticas. Este tipo de relacionamento tem sido favorecido pela presença do Instituto Camões como ponto de encontro. O enfraquecimento das já habitualmente fracas editoras locais exige busca de caminhos que podem passar por acordos ou iniciativas conjuntas cm Portugal. Uma vez mais as iniciativas individuais abrem caminho com o aumento de edição de livros e vídeos de autores africanos em Portugal. Há, porém, um fator central para o desenvolvimento africano que requer urgente apoio internacional oficial e, nesta matéria, Portugal poderia assumir uma linha de valor além do curto prazo, embora exija aplicação imediata. As dívidas africanas são obstáculo maior ao desenvolvimento, na medida em que o seu pagamento absorve com frequência 50% dos orçamentos estatais, reduzindo nessa proporção a capacidade de investimento público, mais importante que no resto do mundo dada a fragilidade do setor privado. Moratórias da ordem dos cinco anos são vertente capital do crescimento económico nos Palop. O alívio nesse período é de natureza a criar novas oportunidades e cumprimento posterior das obrigações financeiras sem anular esse crescimento. Outra vertente situa-se a nível das moedas de Angola, Moçambique e STP. Sem convertibilidade e em desvalorização são incapazes de traduzir a realidade dos respetivos mercados, abrindo espaço ao mercado informal de divisas. A criação de novo quadro monetário é naturalmente um imperativo. As soluções adotadas por Cabo Verde e Guiné Bissau não se aplicam a países da dimensão de Angola e Moçambique. Aguardar a emergência de novas moedas africanas para estes países vai pressioná-los no sentido da lentidão dos ritmos de crescimento. Uma reflexão conjunta é útil para a adoção de nova política e pode ter lugar em dois planos: o dos técnicos e dos decididores. A CPLP tem atributos que permitem fazê-lo nas suas estruturas e quadro de eventos. Será importante acompanhar algumas intenções africanas neste terreno mas também em outros, por exemplo, os projetos de mercados comuns regionais ou entidades como o Comité de Luta contra a seca no Sahel. Com estas vertentes em pano de fundo, podemos dar alguns passos de estímulo à diversificação económica que supere o extrativismo de séculos. Nos objetivos de curto e médio prazo há dois sub-setores prioritários. O agro-alimentar, devido ao aproveitamento dos recursos locais, maior eficácia no abastecimento de bens de necessidade incompressível, criação de empregos no interior e nas cidades e reorientação das despesas em divisas com importação desses bens em benefício dos bens de capital. O apoio de Portugal na atualização de conhecimentos por parte de operadores económicos africanos nesse sentido, seria uma iniciativa importante e realizável online, desde que as autoridades africanas melhorassem as condições de acesso á internet. Há, porém, aqui matéria para interrogações sobre a reação de exportadores portugueses, cujo número é das muitas centenas direcionados para África. Teriam visão e meios para participar no esforço de investimento africano nesse novo quadro? O outro sub-setor é o digital no sentido amplo: de melhoria e ampliação das redes à produção em 3D. Ou seja, teríamos aqui ferramentas de produção e de comunicação que nos aproximaria mais. Não incluímos aqui referências a acordos e intercâmbios sobre a pandemia, âmbito em que se procuram definir vias mundiais e que África deve focar através dos seus acordos bilaterais e na OMS. 


    Jonuel Gonçalves


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    3. O 4 de fevereiro, a unidade dos angolanos e a solidariedade


    No termo da Segunda Guerra Mundial, os EUA e as ex-URSS que haviam combatido os países do eixo, ao saírem vencedores dela passaram a sustentar o direito à autodeterminação dos povos colonizados.

    Esse direito viria a ser consignado na carta das Nações Unidas.

    Não admira, por isso, que os territórios colonizados viessem depois a alcançar independências, sendo que em África o primeiro país a obtê-la foi o Gana em 1957.

    Perante este quadro mundial, o regime político de Portugal que negava esse direito às colónias, passou a sofrer pressões para alterar a política e encetar processos de descolonização.

    É útil recordarmos que em 1961 já existiam em África 17 países independentes.

    John Kennedy, que viria a contrariar a política colonial portuguesa, é eleito em 21 de janeiro desse mesmo ano.

    No dia seguinte à eleição, numa operação denominada “Dulcineia”, o paquete português Santa Maria é assaltado por portugueses que estavam contra o regime, dirigindo esse assalto com cidadãos também de outras nacionalidades.

    O propósito era fazer chegar o navio a Luanda e aí encetar um processo de destituição de Salazar.

    Este facto deu lugar à imediata deslocação de jornalistas de todo o mundo para Luanda para cobrirem o acontecimento.

    Não se pode deixar de registar que nesse mesmo mês de janeiro, mais propriamente dia 11, trabalhadores agrícolas da empresa Cotannang no norte de Angola sublevaram-se face às condições de trabalho, inclusive as baixas remunerações, sendo reprimidos e muitos deles massacrados.

    Segundo alguns historiadores, o assalto ao paquete Santa Maria ao desencadear a deslocação de inúmeros jornalistas para Luanda de conceituados órgãos de comunicação social, fez acelerar o assalto para o dia 4 de fevereiro a vários estabelecimentos prisionais ou policiais, desde logo a Casa de Reclusão Militar de Luanda.

    Como se sabe, por contingências do assalto, o Santa Maria acabaria de ter de alterar o destino projetado pelos insurretos aportando ao Recife no Brasil.

    É obviamente inegável que os angolanos que corajosamente se levantaram contra o regime colonial em Luanda, em 4 de fevereiro, tinham por objetivo colocar em causa esse regime e lutar pela independência do país.

    Quinze dos duzentos assaltantes pagaram a ousadia com a vida contando-se ainda sete mortos nas forças de segurança.

    Na passagem dos sessenta anos do 4 de fevereiro, que este ano ocorre, deve-se realçar que o que uniu os cidadãos angolanos ao ousarem confrontar, em manifesta desigualdade de meios, as forças ao serviço do colonialismo foi o facto de serem angolanos e o desejo de passarem a ser livres na sua própria terra, assumindo o destino dela.

    Não é hoje claro que todos eles fossem militantes ou simpatizantes do então movimento que, a partir da direção no exílio em Conacri, declarou ter organizado a insurreição embora se saiba que alguns deles o pudessem ser.

    Na altura, por já existir outro partido, é de presumir que alguns também fossem simpatizantes deste.

    Todos, porém, estavam unidos por um ideal comum.

    A tese entretanto defendida por alguns historiadores de que o papel determinante para o assalto partiu do cónego Manuel das Neves, conhecido nacionalista e por isso anticolonialista, que dois meses depois se viu pela força exilado em Portugal, parece hoje não ser exatamente correta apesar do conhecimento antecipado do assalto e da cumplicidade quanto aos objetivos.

    Ao sublinhar nesta data a importância para Angola do dia 4 de fevereiro desejo reiterar que o que uniu os duzentos assaltantes foi o facto de serem angolanos, desejando viver numa terra livre e não sob exploração.

    É esta referência à unidade de pensamento e de ação que deve ser tida em conta, independentemente da origem étnica, cultural ou de eventual filiação ou não dos assaltantes em organizações partidárias. 

    Eram angolanos, ponto final.

    Tal como sucedeu em 25 de abril em Portugal, tiveram a solidariedade maioritária do povo português através dos corajosos patriotas que assaltaram o paquete Sana Maria, conscientes que o regime colonial português a todos os povos colonizados oprimia mas também o povo português.

    O dia 4 de fevereiro é, por isso, e bem, considerado feriado nacional que deve ser festejado por todos os angolanos, continuando os portugueses solidários com a esperança de um futuro radioso para os angolanos.

    Como disse Amílcar Cabral, na luta pela independência há que distinguir o regime colonial do povo português, solidário com a luta que então se travava.

    O paquete Santa Maria e o 25 de abril de 1974 são prova do acerto do sentido desta frase.


    Vítor Ramalho

    (Secretário-geral da UCCLA)







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    Millenials e o infortúnio da crise eterna do regime


    Nasci em 1988, numa década profundamente marcada pela queda do muro de Berlim assim como pelo início dos primeiros telemóveis e computadores pessoais. Cresci na década de 90, que marcou o início da globalização como a conhecemos. Grande parte do meu dia era passado a ver séries na MTV ou no Cartoon Network, e o Game Boy fazia parte do meu quotidiano. Profissionalmente, os meus Pais estavam melhor que nunca, aproveitando as oportunidades que os fundos europeus e o mundo global lhes estava a oferecer, oportunidades essas que tiveram o seu apogeu em 98 com a Expo. 


    Globalmente, fez eco uma guerra que acontecia longe, na Juguslávia, cujos relatos e situações nos pareciam geograficamente e emocionalmente distantes. Segundo os dados da Por Data, o nosso país crescia a uma média de 3,4% (CAGR), sendo que em um só ano (1990) creceu 7,9%¹ .


    Á medida que se aproximava o novo milénio, falava-se cada vez mais de bug/crash global que iria paralizar os mercados e a vida de todos. Nessa altura, em pleno governo de António Guterres, investiu-se 20 milhões de contos na administração pública para prevenir “tal desastre informático”². 


    Nessa altura, nem mesmo a garantia de uma passagem feita com sucesso para o Euro com a promessa de juros baixos e de uma convergência europeia, impediram que o então primeiro ministro, António Guterres, se demitisse do cargo, afirmando que o país caminhava para um “pântano político”. Na verdade, o país começava a estagnar, estagnação que foi parcialmente esquecida pelo sucesso do Euro 2004. Mais uma vez, e considerando os dados da Por Data, o país cresceu uma média de 1,35% ao ano (CAGR) entre 2000 e 2005, valor quer compara com 2,3% da União Europeia (dados worldbank³). 


    Internacionalmente, o 11 de Setembro foi o acontecimento que marcou a minha infância, assim como tudo o que se seguiu a nível internacional até à crise do subprime em 2008. Tal período foi mais uma vez marcado por uma profunda estagnação e divergencia em relação à Europa, situação que a crise financeira de 2008 apenas agudizou, antecipando a inevitável ajuda internacional. 


    Agora, em 2020 e com 32 anos, a situação parece estar mais grave que nunca na 2ª grande crise da minha geração. Consultanto os dados disponibilizados pela Por Data sobre o desemprego em Portugal, verifica-se que “apenas” 5,7% das pessoas entre os 25-54 anos estavam desempregadas em 2019. Analisando em detalhe esta informação, e verificando na realidade o tipo de emprego que “um jovem” tem ou pode vir a ter em Portugal, constata-se que a notícia de um desemprego quase estrutural não é de todo uma notícia que nos deva alegrar assim tanto.  


    Segundo uma notícia de 2018 do expresso⁴, os famosos “millenials” foram a geração mais sacrificada desde a grande crise de 2008 com uma diminuição real do salário de 4,6%, situando-se o valor médio de um salário de um jovem neste momento nuns maravilhosos 757€ (valor líquido entre os 25 e os 34 anos). Todavia, restringindo ainda mais o universo aos jovens licenciados, esse valor sobe para os 1.237€, sendo este o sub-grupo mais afetado com a diminuição real dos salários provocado pelo início da grande crise de 2008. Parecendo que não, estes dados dizem muito sobre a nossa economia, e principalmente sobre o futuro desta minha geração:

    • Tendência para uma economia de baixo valor acrescentado, com uma oferta de mão de obra qualificada superior à procura; 

    • Aproximação assustadora entre o salário mínimo e o salário médio⁵;

    • Economia baseada em setores de pouco valor acrescentado como o turismo ou a restauração⁶;


    Apesar de tudo, e esta é obviamente uma opinião pessoal, o “pior” não são os 3 factos que mencionei, mas sim que com eles avaria definitivamente o elevador social que permitiu aos meus Pais terem uma vida muito melhor do que a que os meus avós tiveram. Nesta fase, há uma pergunta que impera ser feita como sociedade. Como podemos inverter esta tendencia/situação? 


    Em conjunto, e como sociedade, temos de desenhar um novo modelo de desenvolvimento que priveligie o crescimento e o investimento, pois só assim poderemos reconstruir o elevador social destruído, foco central do equilibrio social do nosso país. Neste sentido, espero que a associação participar+ com o seu ecletismo, ajude a mover consciências e a construir as soluções que tão desesperamente necessitamos, devolvendo aos cidadão a pouca liberdade que a pandemia para já não nos conseguiu tirar.


    Marcos Ramalho


    1 - https://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+crescimento+real+do+PIB-2298

    2 - https://www.jn.pt/inovacao/ha-20-anos-entramos-no-ano-novo-com-medo-de-um-bicho-que-nao-apareceu-11656308.html

    3 - https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.KD.ZG?end=2006&locations=EU&start=2000

    4 - https://expresso.pt/economia/2018-03-04-Jovens-ganham-menos-do-que-ha-10-anos

    5 - https://www.pordata.pt/Municipios/Diferen%C3%A7a+entre+o+sal%C3%A1rio+m%C3%ADnimo+nacional+e+a+remunera%C3%A7%C3%A3o+base+m%C3%A9dia+mensal+dos+trabalhadores+por+conta+de+outrem-477

    6 - http://www.portugalglobal.pt/PT/Biblioteca/Economianet/PortugalIndicadoresEconomicos.pdf, https://www.gee.gov.pt/pt/indicadores-diarios/ultimos-indicadores/29389-ine-contas-nacionais-trimestrais-18, file:///C:/Users/marco/Downloads/30CNT_2T2019.pdf



  • Segurança e Defesa (1)

    1. PORQUE PRECISAMOS DE REDES DE NOVA GERAÇÃO


    Breve reflexão sobre o papel do Estado no desenvolvimento das redes de telecomunicações em Portugal ou como o país pode ser precursor na digitalização da economia.

    Na década de 1990, surgiu a segunda geração de telefones móveis, que pesavam um quilo e uma rede disponível limitada, mas permitiam enviar mensagens de texto. Nos anos 2000, o 3G, com 50 vezes a velocidade do 2G foi suficiente para suportar aplicações de internet. Sem ninguém prever, a forma de vida das pessoas alterou-se e o telefone só secundariamente serve agora para telefonar, é já, sobretudo, um suporte para aplicações como Focebook ou Uber. Com o 4G e velocidades que multiplicaram por 500 o 3G fez-se o impensável. Passou a ser possível assistir em streaming a plataformas como Netflix, ou jogar em rede com centenas de outras pessoas. Hoje, tudo se centra na experiência multimédia. Já se pode aceder ao banco, ao carro, aos serviços e ao mercado a partir do telemóvel. A Economia está a tornar-se digital. Hoje, as aplicações com maior crescimento já não são as de jogos como até aqui, mas as de e-commerce. 

    O mundo está a mudar e as Redes de Telecomunicações são o oxigénio dessa mudança. Como no passado o terão sido as estradas ou as linhas de caminhos-de-ferro, são agora as redes móveis que virão de determinar a velocidade e a geografia da transformação. 

    Esta decisão é uma decisão política. Se ficar apenas nas mãos de privados, o país ficará divido em duas realidades, cada uma com a velocidade dos Gs que conseguir suportar.

    A cada 10 anos assistimos a uma nova geração que não só oferece mais velocidade como novas potencialidades. Mesmo quando o senso comum parece acreditar já não ser possível moldar mais o futuro, a realidade surge rapidamente e as pessoas depressa se habituam às novas possibilidades que, aliás, passam rapidamente a ser consideradas indispensáveis.

    E hoje? O que podemos esperar das redes de nova geração? O 5G multiplica 100 vezes a capacidade do 4G. O 6G multiplicará, outra vez, 100 vezes a velocidade e a capacidade da geração anterior. 

    Será legítimo perguntar se o 4G já é suficientemente rápido, porquê investir em números como estes? Parece quase ridículo ou pouco sensato. Mas só o é porque ainda não vivemos na sociedade que esta tecnologia está a moldar. Como este rápido relato prova, se os saltos anteriores raramente eram percecionados pelos utilizadores e os operadores de telecomunicações suportavam os avanços com a disponibilização das redes, hoje, os países, ou melhor dito, as potências, estão a liderar este avanço. A diplomacia tecnológica é evidência desta nova ordem.

    Hoje, é seguro assumir que em poucos anos teremos carros com condução autónoma, numa rede de estradas onde todos os outros carros também serão autónomos. Contudo, cada um desses carros estará ligado em rede a todo o momento, pelo que a ligação não pode falhar em momento algum. Cada carro terá informação instantânea de todos os outros e quando um passageiro definir o destino, o cálculo da rota não será o modelo atual de evitar congestionamentos ou portagens, mas será um modelo em rede onde todos os carros se coordenarão para que nunca haja paragens e todas as possibilidades de mobilidade sejam optimizadas. Cada carro saberá onde estão os peões, ou ciclistas à sua volta e não haverá acidentes. 

    Viveremos, em poucos anos, numa realidade hibrida, na qual, através de óculos e auscultadores, teremos acesso a uma camada digital, cuja percepção holográfica poderá ser partilhada com outras pessoas. A participação de cada individuo nos eventos sociais será personalizada. Um jogo de futebol será transmitido através de 60 pontos de captação que emitem em simultâneo, e cada pessoa poderá escolher em que posição quer estar a assistir, e pode, individualmente, rever uma jogada à velocidade e do ângulo que escolher. Tudo, em simultâneo com as outras pessoas que assistem ao mesmo jogo. 

    A próxima geração é da partilha instantânea, onde as latências são quase inexistentes. Será possível controlar as máquinas com se fossem uma extensão do corpo. 

    Nos próximos anos a inteligência artificial vai alterar a vida no nosso planeta, desde a mobilidade, a organização social, a medicina, o trabalho, a saúde, a logística, a segurança ou as comunicações. 

    Esta transformação exige redes que liguem milhões ou biliões de equipamentos. Nos próximos 20 anos vamos ligar o mar, o ar e o espaço. E, nos próximos 20 anos, parcelas inteiras do território nacional podem ou não fazer parte desse futuro.

    No entanto, as soluções de operadores de telecomunicações disponibilizadas atualmente não o permitem. Em Portugal, estamos limitados por redes que não respondem a estas necessidades e as operadoras não têm a capacidade de investimento necessária. Para que exista a próxima geração de tecnologia precisamos da rede de telecomunicações de nova geração. Não seria prudente colocar a saúde, a segurança ou a educação exclusivamente em mãos privadas pelas injustiças que causaria. O mesmo se passa com as redes de telecomunicações, que, em parte, determinarão os avanços possíveis naquelas e nas demais áreas. 

    Hoje, sabemos que há zonas onde não existe rede 4G porque as ondas rádio têm um alcance de uma torre, cujo valor máximo, sem interferências, é de 16 kms. Para construir o futuro precisamos de uma rede com alcances menores e de frequências mais altas, mas que se perdem em obstáculos, como um edifício ou uma árvore ou são afetadas pelas condições meteorológicas como chuva, por exemplo. Para contornar este problema será necessário garantir, a implantação de uma antena 5G a cada 300 metros.

    Temos um caminho a percorrer para que as pessoas, as empresas, a sociedade em geral tenha acesso a estas redes. Só é possível com o compromisso do Governo de acesso universal às redes e informação. O governo tem fortes aliados nas universidades, indústria, media, sociedade civil e cultura de Portugal. O mapa para a implementação das redes de nova geração em Portugal é, na minha opinião, intuitivo, inicia-se com a identificação das zonas sem cobertura LTE e com a expansão de redes públicas para fornecimento de serviços críticos. Em simultâneo, faz-se uma selecção de pequenas vilas piloto em todo o país, para as transformar em cidades inteligentes, com acesso universal à Internet, com salas de aula apoiadas em inteligência artificial, e com favorecimento digital para a indústria. 

    Não há transformação digital sem redes de telecomunicações, pelo que um acordo global entre operadores privados e o estado é basilar. O compromisso tem que ser firmado agora.

    É agora que Portugal, cuja dimensão é suficientemente pequena para acomodar este investimento de forma equilibrada, e suficientemente grande para servir de exemplo, pode reassumir a sua natureza precursora, desta vez através das vias digitais, tecnológicas e ambientais, tal como outrora o fez nas vias marítimas.


    Susana Perdigão Neves

  • Justiça (0)

“Portugal: a juventude e os desafios do futuro”.

O evento realizou-se pelas 14h30 de sábado, no auditório D. Pedro IV da Santa Casa da Misericórdia do Porto

A moderação esteve a cargo de António Costa Silva, professor no IST e responsável pela planificação do PRR, e de Ana Gabriela Cabilhas, representante da Federação Académica do Porto.


Foram apresentados dois painéis: o primeiro relacionado com a ‘Saúde, Ciência e Investigação Científica’ e terá como oradores o professor Sobrinho Simões, presidente do Ipatimup, e João Pedro Videira, presidente do Conselho Nacional de Juventude. Já o segundo focou-se em ‘Ambiente, Emprego e Digitalização’ e trará a palco Elisa Ferreira, comissária da União Europeia, e José Diogo Marques, do Movimento Cumprir Portugal. Incumbido de encerrar as hostes esteve António Tavares, provedor da Santa Casa da Misericórdia do Porto. 


No evento, foi ainda apresentado o segundo caderno da Participar+, cujo título é “Contributos para respostas a importantes questões do presente”. Este segundo caderno é prefaciado por Eduardo Ferro Rodrigues e conta com colaborações de António Saraiva, Susana Santos, Manuel Fonseca, Vítor Ramalho, António Costa Silva, Ana Paula Martins e Carlos Monjardino. 


Recorde-se que, em abril deste ano, a Participar+ havia lançado o seu primeiro caderno - “Portugal que prioridades para o futuro” -, prefaciado por Marcelo Rebelo de Sousa e escrito por Ana Paula Martins, António Costa e Silva, João Ferreira do Amaral, Ricardo Paes Mamede e Vítor Ramalho. 


COLÓQUIO

PORTUGAL  
QUE PRIORIDADES PARA O FUTURO 

Segunda-feira, 5 de outubro, 2020  

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Doutor António Costa Silva

PORTUGAL – QUE PRIORIDADES PARA O FUTURO?

Professora Doutora Ana Paula Martins

Moderação

Doutor João Ferreira do Amaral  

A afirmação de Portugal no mundo

Doutor Ricardo Paes Mamede  

O Estado e o desenvolvimento no séc. XXI

Local 

Auditório 2 da Fundação Calouste Gulbenkian
 Professor do IST
Professor Catedrático do ISEG
 Professor do ISCTE
  • Intervenção do Professor Dr António Costa Silva , fundador da Participar+ sob o titulo :" PORTUGAL – Que prioridades para o futuro?" na sessão levada a efeito na Fundação Calouste Gulbenkian no dia 5/10/2020

    PORTUGAL – Que prioridades para o futuro?



    Discurso de António Costa Silva


    Muito obrigada Dr.ª Ana Paula Martins, pela apresentação, queria cumprimentar os meus colegas de painel, o Professor João Ferreira do Amaral e o Professor Ricardo Paes Mamede. Queria cumprimentar toda a assistência, saudar o senhor Chefe do Estado Maior das Forças Armadas, Almirante Silva Ribeiro e, na pessoa dele, todas as autoridades.

    Mas queria começar a minha intervenção por saudar o Dr. Vítor Ramalho. Eu penso que o Dr. Vítor Ramalho é uma força da natureza, um cidadão que tem muito presente o empenhamento cívico, a criação desta plataforma, Participar +, é um exemplo. E o país precisa deste tipo de instituições, porque o país precisa, mais do que nunca, de discutir o que se faz em termos das políticas públicas, da aplicação dos fundos europeus, do escrutínio das decisões que os poderes tomam.

    Nós já cometemos erros muito graves no passado. É fundamental, neste novo ciclo que começa, evitar que esses erros se repitam. E, portanto, o engajamento dos cidadãos, o debate, a exigência de novos modelos de governança, a exigência de uma aplicação que seja frutuosa, de todos esses fundos, é absolutamente indispensável para o futuro.

    Mas antes de falar das prioridades para o país, eu queria abordar o enquadramento em que nós estamos. Respondendo um bocado à questão: o que é que nos está a acontecer? Quando olhamos para esta questão, primeiro que tudo, é a crise sanitária, que é uma crise sanitária global. Mas esta crise sanitária interroga muitos dos paradigmas que nós tínhamos, no passado, e muitas das ideias feitas. 

    Primeiro que tudo, esta crise alarga o âmbito dos desafios da saúde: O que é que são os desafios da saúde hoje? 

    O que é o paradigma da segurança nas nossas sociedades? Quando é a própria segurança da espécie humana, que hoje está em causa. O que é que este vírus transporta, no seu efeito darwinista, para o funcionamento das nossas sociedades penalizando os menos saudáveis, os menos aptos, os menos resistentes? É uma marca distintiva da civilização não deixarmos que os mais vulneráveis fiquem para trás e, por isso é extremamente importante tirarmos todas as ilações desta crise sanitária global e termos um reforço das políticas sociais. Provavelmente, reconfigurar essas políticas e tudo aquilo que se passa relativamente aos lares de idosos e não deixarmos, em circunstância alguma, ninguém para trás. 

    E, portanto, o reforço das políticas sociais e a sua reconfiguração é absolutamente vital, porquê? 

    Porque este vírus darwinista está a aumentar as desigualdades na sociedade, está a criar fossos cada vez maiores, está a pôr em causa muitos dos paradigmas que existiam. Como todos sabemos, as democracias são regimes conflituais mas são também regimes de confiança, mínima, entre governantes e governados, e o aumento excessivo das desigualdades é tóxico para as democracias. Se deixarmos que as coisas continuem assim, com as desigualdades a agravarem-se tendo em conta a forma como elas estão a evoluir, rapidamente vamos enfrentar situações muito difíceis no futuro.

    Mas este vírus também colocou em cima da mesa a aceleração de toda a conectividade digital, a aceleração da mudança tecnológica e isso coloca problemas novos para o futuro. Desde logo, interroga a natureza do trabalho: o que é o paradigma do trabalho hoje? Com o teletrabalho, com o desaparecimento rápido das fronteiras entre a privacidade, o espaço público e o espaço profissional, novos desafios se colocam e provavelmente vamos ter modelos híbridos de trabalho no futuro. São questões fundamentais, mas nenhuma delas será, porventura, tão importante, como a questão da gestão dos riscos. Que sociedade é a nossa, que civilização é a nossa, que não está a conseguir antecipar e gerir os riscos?

    Reparem que no fim do Renascimento, quando entramos na modernidade, a gestão do risco foi uma característica distintiva da civilização. Quando Luca Pacioli e os seus companheiros começaram a inventar a base preliminar da Teoria das Probabilidades, que depois se propagou pela Europa, e a ligaram à análise dos riscos nas sociedades, inauguramos um novo paradigma. E o que é que acontece hoje? As nossas sociedades acumulam informação, como nunca antes, na história. Nos últimos cinco anos, o volume de informação acumulado no mundo aumentou vinte vezes. E nós não estamos a conseguir transformar informação em conhecimento, não estamos a conseguir transformar conhecimento em sabedoria. Faz lembrar muito esse verso premonitório, do poeta T. S. Eliot, onde ele perguntava “onde está o conhecimento que se perde na informação, onde é que está a sabedoria que se perde no conhecimento”. Isto é especialmente relevante para um país como Portugal que enfrenta múltiplos riscos. Nós temos que ter um Centro de Resiliência no país, e temos de ter um paradigma para identificar e antecipar os riscos. 

    Como é que o país vai responder à próxima pandemia? Como é que o país vai responder à crise climática brutal que o planeta está a atravessar e que está a provocar a desertificação progressiva, no Alentejo e no Algarve? Nós somos um país que tem riscos múltiplos, desde logo o risco sísmico. O que é que acontece amanhã, se existir um sismo no nosso país? É perfeitamente possível à luz das leis da geologia. Estamos preparados para responder? O que é que acontece amanhã, se o gasoduto Magrebe, que traz gás para Portugal, a partir da Argélia, for paralisado? 50% do gás que o país consome vem da Argélia, nós não estamos provavelmente preparados para enfrentar estes riscos. E essa é, porventura, uma questão que a crise coloca em cima da mesa. Analisar os riscos, antecipar os riscos e tratar da resiliência do país. O nosso país tem muitas vulnerabilidades, e muitas vezes não prestamos atenção à necessidade de ter planos de mitigação para fazer face a essas vulnerabilidades. Mas talvez um outro aspeto que o vírus colocou e alargou é a questão da incerteza.

    O que é a incerteza hoje? 

    Nós vivemos numa sociedade completamente dominada pela incerteza, que corrói tudo, corrói o funcionamento das instituições, corrói a vida dos cidadãos, corrói o funcionamento da economia, corrói o planeamento das empresas. Quando eu ouvi um famoso epidemiologista britânico, a ter esta formulação, absolutamente notável: “A ausência da evidência do vírus, não significa a evidência da ausência do vírus”. Quando estava a analisar esta frase, no início pensei que era uma tautologia, mas de facto não é uma tautologia. Este vírus trouxe, de certa maneira, a mecânica quântica para dentro da epidemiologia. Quando a mecânica quântica foi inventada, no início do séc. XX, Schrödinger, um dos físicos alemães, inventou uma famosa experiência mental para demonstrar que os princípios da mecânica quântica contrariavam tudo o que era o senso comum. Nessa famosa experiência, que ficou conhecida como “o gato de Schrödinger”, nós temos um gato encerrado numa caixa preta, não se vê nada lá para dentro, e aplicando os princípios da mecânica quântica, nós não sabemos se o gato está apenas vivo, ou apenas morto. O gato está simultaneamente vivo e morto. E o caso deste vírus, com toda a sua natureza Schrödinguiana, está a alargar e a exponenciar a questão da incerteza, e tem um impacto fortíssimo no funcionamento da vida em sociedade. Atenção, se esta incerteza se propagar por muito tempo, a corrosão que os sistemas democráticos e os sistemas de governação podem sofrer é muito severa. 

    Mas também, quando nós falamos da crise, não nos podemos esquecer, que ela, no caso do nosso país, evidenciou todos os constrangimentos estruturais que a nossa economia revelou, ano após ano. Nós entramos no séc. XXI e esquecemos a economia no século passado. De 2000 a 2015 a Taxa Média de Crescimento do país foi de 0.05%, a economia nacional estagnou. Considero isto uma vergonha nacional e esta estagnação explica muitos dos problemas que enfrentamos hoje. Até a ténue recuperação que tivemos, nos últimos anos, foi rapidamente liquidada pela explosão dos constrangimentos estruturais habituais. Um mercado interno muito limitado, empresas descapitalizadas, uma dívida pública muito grande que é, ela própria, inibidora do crescimento, uma estrutura produtiva com muitas limitações, o investimento a cair, a produtividade baixa. 

    O que é que é preciso fazer em termos de prioridades para responder a esta crise e para recuperar o país?

    Duas coisas apenas: pôr as pessoas e as empresas no centro do plano de recuperação. Pôr as pessoas no centro do plano de recuperação significa apostar, mais do que nunca, na educação, na qualificação da população ativa. Nestes 46 anos de democracia, existiram avanços na educação, na saúde, na ciência, na tecnologia, em tudo mais, e é incomparável a situação que vivemos hoje, com aquela que vivíamos há 46 anos atrás. Mas, apesar de todos esses avanços, nós somos o país que tem o pior desempenho da União Europeia a 27 em termos da percentagem da população activa que termina o ensino secundário. Somos o pior dos 27 países europeus! Se daqui a 10 anos pudermos dizer que estamos na média europeia, um dos constrangimentos estruturais que bloqueia o desenvolvimento da nossa economia, poderá, eventualmente, desaparecer. Mas ter as pessoas no centro também significa muita atenção aos setores mais vulneráveis da população. Luta sem quartel contra a pobreza, luta sem quartel para minimizar as condições em que, muitas vezes, as pessoas mais desfavorecidas vivem. Uma sociedade que se olha ao espelho, uma sociedade que seja decente, não pode ignorar as franjas mais desfavorecidas da população. Mas pôr as pessoas também no centro significa lutar pela qualificação do emprego, temos de qualificar o emprego e impedir as formas em que esse emprego é exercido de forma precária.

    Se as pessoas são fundamentais, o outro lado da questão são as empresas. São as empresas que criam riqueza, que geram prosperidade, que geram postos de trabalho. Nós temos que tratar bem as nossas empresas, de acordo com aquilo que está estabelecido pela lei e com políticas publicas claras. Nós somos um país que pode dar o salto, nós temos competências funcionais, conseguimos criar novos produtos e serviços e alguns de alto valor acrescentado. Nós podemos diversificar a estrutura produtiva e lutar contra as limitações do mercado interno. Desde logo, procurando uma maior interconectividade na Península Ibérica e, por isso, é indispensável a aposta nas infraestruturas e, sobretudo, na rede ferroviária elétrica nacional, que ligue as capitais de distrito e ligue o país ao grande “Hinterland Ibérico”. Se isso for feito, com tudo aquilo que se está a passar no interior do país, nomeadamente nas zonas e nas cidades muito perto da fronteira, nós podemos ter uma mudança absoluta de paradigma. Nós podemos mudar o destino do interior do país, ou dos territórios de baixa densidade, votados ao abandono e declínio, para fazer desses territórios a centralidade do “Hinterland Ibérico”.

    E, como é que isso se pode fazer?

    É olhar para Bragança, para Castelo Branco, para Beja e Évora. Com o desenvolvimento das universidades, dos politécnicos, com o dinamismo das autarquias e das empresas, nós temos aí ecossistemas e polos de tecnologias agrícolas. Se olharmos para Castelo Branco e para a Covilhã, nós temos hoje um polo de ciências biomédicas. Se olharmos para o Fundão, é extraordinário o dinamismo do presidente da câmara que conseguiu atrair start-up´s e talentos e criar uma espécie de microcosmos das tecnologias digitais. E nós podemos com base nas valências existentes criar espaços geoeconómicos integrados, falar com o outro lado da fronteira, mudar a vida destas comunidades e transformar o paradigma que existe hoje. Estou convencido que se tivermos as políticas públicas corretas, com as ferramentas e as valências que existem, é possível mudar o destino do interior do país e colocá-lo na centralidade do “Hinterland Ibérico”.

    Mas, quando falamos das empresas, temos também de falar da situação difícil que enfrentam. As empresas estão a passar situações extremamente difíceis ao nível da sua tesouraria e, para aquelas que são viáveis economicamente, eu defendo que o Estado, o governo, tem de intervir, tem de ajudar as empresas, pelo menos, neste espaço temporal que vai mediar até à chegada dos fundos europeus. Se nós deixarmos que as empresas que são viáveis economicamente, no nosso país e que estão em dificuldade - por circunstâncias que têm a ver com a pandemia e com a penalização fortíssima que tiveram em termos da venda dos seus produtos - entrem em colapso, a recuperação económica vai ser muito mais difícil e vai ser muito mais lenta. O sofrimento indizível que a falência de muitas empresas está a criar e vai continuar a criar, vai contaminar toda a atmosfera do país e, por isso, estou extremamente preocupado. Nós precisamos de rapidez, precisamos de agilidade, precisamos de conversar, de múltiplas maneiras, com todo o tecido económico e produtivo e ver o que é que é possível fazer para preservar a capacidade produtiva do país e isso é decisivo para o futuro. Ao mesmo tempo que olhamos para isso, nós não podemos ignorar o problema demográfico que temos.

    Nós somos um país em retração demográfica e o envelhecimento da população está a acontecer a um ritmo elevado. A retração demográfica é também uma espada de Dâmocles que pende sobre o futuro da nossa economia. É preciso reforçar todas as políticas de natalidade ativa, mas trabalhar também ao nível da diáspora. Nós temos uma diáspora espalhada pelo mundo, e que pode contribuir para o desenvolvimento do país e, atenção, os chineses à escala deles, foi o que fizeram. Mobilizar a diáspora, criar redes e, tentar atrair para o país muitas das pessoas e muito do talento que nos deixou. Mas nós também não nos podemos esquecer que, todos os anos, atraímos para o nosso país, graças à internacionalização do ensino superior e à sua qualidade, um número assinalável de estudantes estrangeiros, que aqui estudam e trabalham, e podem ser uma outra área muito importante para fazer face a este desafio. Culminando, finalmente, com uma gestão inteligente das migrações. Quando olhamos para todas estas circunstâncias, temos que ligá-las à análise da estrutura produtiva do país.

    Entre as várias fontes e estudos sobre a economia portuguesa, que tive oportunidade de consultar e debater, queria enfatizar os trabalhos do Laboratório do Crescimento da Universidade de Harvard, dos Estados Unidos. Eles estudam e monitorizam o crescimento das economias mundiais e, sobre Portugal, o último estudo que está disponível é de 2018, e mostra o mapa da estrutura produtiva do país e das nossas exportações. Divide os setores produtivos em áreas de baixo valor acrescentado, que estão representadas a castanho e de alto valor acrescentado, que estão representadas a azul. O que é claro é que, ao nível de complexidade, a economia portuguesa, está à volta de 0.72, numa escala de 0 a1. Portanto, nós estamos ainda muito abaixo da zona mais alta onde se localizam as economias mais ricas do mundo. É evidente que as economias mais ricas do mundo têm um nível de complexidade elevado. O que é que isto traduz? A riqueza de um país está umbilicalmente ligada à diversificação da sua estrutura produtiva, ao desenvolvimento de novas capacidades e, atenção, à capacidade de criar produtos e serviços de alto valor acrescentado. 

    O que é que a Universidade de Harvard fez? 

    Investigou, entre 2002 e 2017, qual foi o número de produtos novos que a economia portuguesa foi capaz de criar e foram 35 novos produtos, coincidindo com uma fase de baixíssimo crescimento económico e de estagnação do país. Mas, mesmo assim, o país demonstrou que tem competências funcionais, sabe fazer, criou 35 novos produtos, foi a 12.ª economia do mundo neste indicador. Quando eu olhei para estes dados, perguntei-me a mim próprio: como é que isto é possível? Onde é que estamos a falhar? Como é que nós temos estas competências funcionais e depois não conseguimos traduzir isso num crescimento económico que se veja, que seja significativo, que mude esta trajetória triste da economia portuguesa, ano após ano, de vivermos sempre no limite da sobrevivência. E, acredito hoje, é possível mudar. Porquê? Porque as razões porque não crescemos são muito claras. A parte correspondente aos produtos de alto valor acrescentado, o peso que têm no conjunto das nossas exportações, ainda é relativamente baixo. Depois, o outro fator, é o conteúdo importado das nossas exportações, que é dos mais elevados da Europa. A nossa economia continua desorganizada, as empresas têm fraco espírito de cooperação, umas com as outras, muitas vezes importamos o que podíamos obter no país. Não olhamos suficientemente e de forma persistente para as nossas cadeias de valor e é por isso que eu defendo que, nesta nova fase, não basta olhar para os clusters, é preciso olhar para os clusters e para as cadeias de valor. É preciso subir nas cadeias de valor, e ver também o que é que nós podemos produzir no país. Temos de ter uma estratégia inteligente de substituição de importações, em múltiplos setores e isso pode fazer uma diferença imensa. Temos que subir nas cadeias de valor e isso é possível se nós tivermos esse desígnio à nossa frente. É, portanto, um salto que está ao nosso alcance e que, pode mudar a nossa trajetória. 

    No fundo, o que é que nós temos hoje? 

    Temos competências funcionais e, o que nos falta são as competências institucionais. E aí, peço desculpa, é onde falhamos e falhamos clamorosamente. Nós não temos políticas públicas consistentes, contínuas e sábias. Não damos muita atenção à necessidade de aumentar as capacidades de gestão a todos os níveis, não damos a atenção devida ao marketing para vendermos não só produtos mas também marcas e internacionalizar as nossas cadeias de valor. Daron Acemoglu e James Robinson, no seu livro extraordinário - “Porquê é que as nações falham?” - nomeiam os três fatores que são essenciais para compreender porquê que algumas nações têm sucesso e porquê que outras falham. O primeiro é a qualidade das instituições. Muita atenção à necessidade contínua de aumentar a qualidade das nossas instituições e à defesa dessa qualidade. O segundo fator é a inteligência nas políticas públicas, em particular nas políticas económicas, sempre ligadas àquilo que os economistas chamam os design mechanisms, os mecanismos corretos para fazer funcionar o sistema económico na direção apropriada. Mas, o outro fator, que é absolutamente importante, é a capacidade de criar mercados inclusivos, e de integrar o maior número de pessoas na actividade económica. Tem também muito a ver com a criação de oportunidades para os jovens, com a capacidade dos jovens que saem das universidades e que têm ideias de terem a possibilidade de criar e desenvolver as suas próprias empresas e lançarem produtos e serviços inovadores. O papel das sociedades de capital de risco é importante para o financiamento destes projetos, porque entre cinco a sete projetos, se tivermos um ou dois que sejam positivos, nós podemos ter uma nova geração de campeões globais no país. 

    É fundamental focar as políticas sobre essas questões e, depois, outra área em que falhamos de forma clamorosa: nós temos excelentes empresas no país, muitos bons gestores, mas temos de melhorar a qualidade média da gestão. É por isso que eu defendo que todos os programas de digitalização das empresas, com o apoio público, têm de ter uma condicionante levando a gestão a frequentar cursos de refrescamento, preparados pelas Faculdades de Economia. É absolutamente vital para o país, e porquê? Porque se nós conseguimos fabricar produtos, mas depois não conseguimos vender os produtos, de forma adequada, se não damos atenção à internacionalização dos produtos, à venda à escala global, à ligação da engenharia com o design e com os mercados internacionais, falhamos muitas vezes em áreas que são absolutamente cruciais. Temos um país, os Estados Unidos da América, em que ainda não inventaram o produto e já o estão a vender numa base global, e nós muitas vezes fazemos exatamente o contrário. Concentramo-nos e focamo-nos e, muito bem, na invenção dos produtos, mas depois esquecemos tudo aquilo que é fundamental para criar riqueza. 

    Tendo dito isto, e no contexto da análise ao que se passa na economia portuguesa, nós não podemos esquecer que estamos em presença daquilo que muitos chamam, eu incluído, uma singularidade tecnológica. O que é que isto significa? Há estudos, por exemplo da McKinsey, que indicam que esta nova geração de tecnologias digitais, pode ter um impacto na economia que é dez vezes maior do que o da revolução industrial, e a uma escala trezentas vezes maior. Quando nós falamos, hoje, da inteligência artificial, das máquinas que aprendem, da robótica avançada, das nanotecnologias, da nova ciência dos materiais, essas tecnologias aplicadas ao sistema económico e produtivo, podem proporcionar ganhos de escala, ganhos de produtividade e eficiência absolutamente fulcrais para o futuro. Desde logo, na inovação, na criação dos produtos, na inovação dos processos de trabalho, na inovação dos modelos de negócio. O que se está a passar hoje é exatamente aquilo que um jovem cientista da equipa de Alan Turing, visualizou nos anos duros da segunda guerra mundial, quando eles estavam todos encerrados em Bletchley Park, para decifrarem os códigos de comunicação do exército alemão, o famoso Enigma. Aquela equipa extraordinária de matemáticos e cientistas criou a ciência da computação moderna. Um dia Irving John Good, um dos cientistas, virou-se para Alan Turing e disse que aquilo que estavam a criar podia significar que a espécie humana, no futuro, fosse confrontada com uma “explosão de inteligência”. Nós temos hoje uma espécie de explosão de inteligência, que pode ser proporcionada pela aplicação destas tecnologias, que vão mudar o mundo e vão formatar as nossas sociedades no futuro. 

    Estou absolutamente convencido disso e posso-vos dar um exemplo: os carros autónomos. Todos os anos há, no mundo, um concurso internacional que é o Internet Image Challenge, onde competem equipas que lidam com a inteligência artificial, sistemas periciais, das universidades e empresas de todo o mundo. Com os biliões de imagens que hoje existem na internet, essas equipas são testadas, para ver se o seu sistema, com base nas redes neuronais, que funcionam como o cérebro humano, são capazes de identificar as imagens. Em 2012 a equipa que ganhou, teve uma fiabilidade de 82%. Três anos depois, em 2015, a equipa da Universidade de Ontário, que ganhou, apresentou um sistema com fiabilidade de 96%. A espécie humana tem uma fiabilidade na ordem dos 95%, isto é, as máquinas já fazem melhor do que nós. E eu sou das pessoas que não demoniza as máquinas, já tivemos, no passado, inúmeras experiências desse tipo, não vale a pena demonizar as máquinas. Nós temos que aprender a trabalhar com as máquinas, investir fortemente nas ciências de dados, e usar as máquinas de forma inteligente, em vez de invectivá-las. Os cientistas dos dados serão uma das áreas de especialização com mais procura mundial nos próximos anos. Os sistemas de programação vão continuar a ser cruciais. As máquinas podem-nos ajudar a ultrapassar a situação em que estamos e a responder a alguns dos grandes desafios que nós temos pela frente. As tecnologias não são uma panaceia para os males do mundo, mas o uso inteligente das tecnologias pode ajudar a resolver muitos problemas.

    Portanto, a aplicação das tecnologias digitais pode ser um dos fatores que pode transformar a economia portuguesa e, o outro que não podemos esquecer é a eficiência energética. Nós consumimos mais 30% do que a energia que precisamos e, se nós tivermos maior eficiência energética - segundo vários estudos sobre a economia portuguesa – isto pode ter um impacto brutal na produtividade total dos fatores de produção. E, portanto, nós temos ferramentas, que articuladas com a rede 5G que vai mudar o paradigma da conectividade, podemos utilizar para transformar o país e para lançar o próximo ciclo. Antes de abordar brevemente as prioridades para este ciclo, ou aquilo que eu penso que são as prioridades, queria dizer uma coisa: quando falamos da crise sanitária, da crise económica e social, nós estamos a falar da ponta do iceberg, mas em baixo, no icebergue, nós estamos confrontados hoje, com uma gravíssima crise ambiental e climática. Nós somos uma civilização que transforma recursos em lixo, a uma velocidade sem precedentes na história. 

    Há um estudo do US Geological Survey que mostra, com muita clareza que, em termos percentuais, nós estamos a consumir hoje 618 vezes mais petróleo, que há 50 anos atrás, 1000 vezes mais gás, 756 vezes mais níquel, 1500 vezes mais bauxite. Não é sustentável e é, por isso, que acho que uma das grandes apostas, para o próximo ciclo, é a aposta na economia circular. A economia circular é a rutura deste paradigma. Nós transformamos recursos em lixo, é preciso começar a transformar lixo em recursos. Só para vossa informação, na União Europeia, por ano, produzimos quatro mil milhões de toneladas de resíduos. Cada um de nós, dos 500 milhões de cidadãos da União Europeia, produz oito toneladas de lixo por ano. Se cada um de nós se olhar ao espelho, pode perguntar: Como é que somos capazes de produzir oito toneladas de lixo por ano? Nós somos a civilização do desperdício, que vive da bulimia dos recursos e, portanto, esta rutura de paradigma é absolutamente essencial. Só nesta área da economia circular, se formos capazes de tratar os resíduos, podemos ter um mercado europeu da ordem dos 650 mil milhões de euros. Podemos criar novas fileiras de riqueza, criar e acrescentar valor, e as nossas indústrias de química e física podem ter um papel fulcral no desenvolvimento destas novas fileiras industriais.

    Um outro aspeto, que é também muito preocupante para nós, tem a ver com o mar. Há um projeto internacional que é o projeto ARGO. Eles descem sensores muito pequenos no oceano, que vão até dois mil metros de profundidade, descem e sobem, em ciclos de dez dias e o que é que se passa? Estes sensores dão-nos todas as informações do oceano, como nunca antes tivemos - pressão, temperatura, nível de acidificação, CO2, nível de oxigénio, plásticos, volume de recursos biológicos - e uma das descobertas é extraordinária e muito preocupante. Nós deixamos acumular nos últimos 30 anos, nos três metros superficiais da camada do oceano, energia que é equivalente a mil milhões de vezes a energia deflagrada pelas bombas atómicas de Nagasaki e Hiroshima. Temos uma bomba térmica ao retardador no topo do oceano e temos de agir. O mar é um dos grandes ativos que temos e nós conhecemos pouco do mar e temos que o entender. É por isso que defendo a criação de uma grande universidade do Atlântico, com base nos Açores e na Madeira. Os Açores são um dos sítios do mundo mais importantes para se investigar as interações entre o oceano e a atmosfera, entre a terra e o ar. É preciso descobrir os mecanismos que os cientistas hoje ignoram. Como é que esta energia se liberta para a atmosfera? Ela causa os fenómenos climáticos extremos, os furacões, os ciclones, com a devastação impressionante que criam em todo o planeta. Se conseguirmos descobrir este mecanismo, esta informação vale biliões de dólares. O nosso país, com todas as suas valências, pode atrair, para os Açores, para esse grande projeto, consórcios internacionais, com universidades e empresas, porque isto é uma preocupação da Europa e do mundo. 

    Nós temos que minimizar a ameaça climática e, atenção, o mar é um dos nossos grandes ativos. Defendo uma aposta fortíssima para criarmos um cluster das indústrias do mar, não só na parte da energia, como da bioeconomia, da economia azul. O mar e, sobretudo o nosso mar, com as características e a temperatura que tem, muito favorável para a cultura e processamento de algas, pode ser um motor da bioeconomia. As algas podem ser processadas, pode-se criar biofertilizantes para substituir os fertilizantes químicos, pode servir à biofarmacêutica, à produção de biofármacos, e tudo o resto. Mas uma das áreas mais importantes tem a ver com a pesca. Outra descoberta do projeto ARGO, que os noruegueses estão a utilizar e que é extraordinária, tem a ver com o que se passa entre os 200 metros e os 1000 metros de profundidade, na chamada camada mesopelágica do oceano, que os saxónicos designam por Twilight Zone, porque é incrível o que se passa aí. É a zona do planeta em que há a maior migração que temos e, ela faz-se todos os dias. É algo que os marinheiros dos submarinos descobriram na segunda guerra mundial, quando reportavam que, quando o sol se põe, parece que” o fundo do mar vem para cima”. Estes biliões de organismos que vivem na camada mesopelágica são dez vezes mais do que tudo aquilo que estava estimado até hoje, e pode ser uma das grandes soluções para mudar a dieta alimentar, para combater a ameaça climática e para criar riqueza. Os noruegueses estão a fazê-lo. Os cardumes de salmão estavam em declínio na Noruega. Com a informação do projeto ARGO, eles construíram gémeos digitais, com base em sistemas de inteligência artificial, simulam o comportamento dos cardumes, pescam na altura devida e evitam a sobrepesca, e os resultados são espantosos. Porque é que nós não podemos fazer o mesmo em Portugal? Isso passa pela modernização das frotas, trabalhar com base no conhecimento, na ciência, na tecnologia, na inovação. Isto é indispensável para construir o futuro. Nós temos que intervir no mar, com base no conhecimento, na ciência e na tecnologia e isso pode mudar tudo e assegurar altos padrões de sustentabilidade.

    Queria terminar nomeando aquilo, que me parecem ser, as prioridades para o país. A primeira das prioridades, como podem deduzir de tudo aquilo que eu disse é a educação, é a qualificação. Se nós investirmos fortemente na qualificação e sairmos do último lugar, em que estamos hoje, ao nível da percentagem da população que termina o ensino secundário, eu penso que nós podemos ter um caminho para o futuro. A segunda prioridade é a ciência, tecnologia e inovação. No ano passado, em 2019, o país investiu 1.4% do Produto Interno Bruto (PIB) na ciência, tecnologia e inovação. É ainda pouco. Nós precisamos, pelo menos até 2030, mais do que duplicar esse número, subir a 3%, ou mais. Tudo o que se investe em ciência, tecnologia e inovação tem reflexos muito importantes no tecido económico e produtivo e pode mudar a trajetória do país. Nós não precisamos de um modelo de desenvolvimento económico baseado em baixos salários. Precisamos de um modelo de desenvolvimento económico baseado na inovação tecnológica, na ciência, no conhecimento. 

    E isso é possível, porquê? 

    Porque os estudos são muito claros. O investimento que se fez, nas últimas décadas, em ciência e tecnologia, tem mostrado efeitos positivos ao nível do funcionamento do país. Este ano, a 23 de junho de 2020, o European Innovation Scoreboard, da União Europeia, que classifica os países em termos da sua evolução na inovação e desenvolvimento tecnológico, mudou Portugal de “inovador moderado”, para” inovador forte”. Isto significa que o sistema científico e tecnológico português está a funcionar. E tivemos uma resposta clara, com a crise sanitária, quando as empresas, os centros tecnológicos, as universidades, os politécnicos, se mobilizaram e deram respostas, fabricando ventiladores e outros equipamentos, usando a impressão tridimensional e outras tecnologias. Isso é possível e, portanto, temos de acreditar que somos capazes e temos competências funcionais para responder. 

    Depois outro dado que, para mim é muito marcante, em 2019 há 4 mil pequenas e médias empresas que reportaram investimentos em inovação e desenvolvimento tecnológico. Lembra-me há alguns anos atrás, quando discutia com os meus colegas, no Instituto Superior Técnico, muito preocupados com o futuro do país, e a capacidade de darmos um salto. E dizíamos: “no dia em que o país tiver mil pequenas e médias empresas a investirem em inovação e desenvolvimento tecnológico, provavelmente já teremos uma base”. Hoje temos 4 mil, é preciso cartografar estas empresas, ver que empresas são, isto pode ser uma base extraordinária para captar investimento externo e para proporcionar uma via de desenvolvimento da economia do país. Eu penso que isso é possível, considerando que, de 2015 até 2019, o investimento que o setor privado fez em investimento em inovação e desenvolvimento tecnológico, subiu 50%. 

    Em 2018 e 2019, pela primeira vez, em dois anos consecutivos, o investimento do setor privado, nesta área, é superior ao investimento do setor público. Isto significa que as coisas estão a passar para o tecido produtivo, que as empresas estão muito mais atentas à inovação e ao desenvolvimento tecnológico e que nós temos aqui uma grande plataforma para mudar a vida do país. Mas, para mudar, como muito bem propuseram muitos dos cidadãos, que participaram na discussão da visão estratégica, é preciso um pacto do regime para a ciência, para a inovação e para o desenvolvimento tecnológico. As nossas universidades, os nossos centros tecnológicos, os nossos politécnicos, estão muito dependentes de decisões avulsas que são tomadas, ano após ano. Não têm capacidade de planear num horizonte temporal alargado. É preciso mudar isso e, provavelmente, simplificar, desburocratizar muitos dos procedimentos que a Fundação para a Ciências e Tecnologia (FCT) ainda tem hoje. 

    A terceira prioridade são os serviços públicos, o Estado, a administração pública e desde logo, o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Nenhum português compreenderia, depois desta experiência, que no próximo ciclo, não se fortalecesse o SNS, não se libertasse o SNS dos seus constrangimentos endémicos, apostando nas infraestruturas, apostando nos profissionais de saúde e optimizando a gestão de todo o sistema. Mas nós temos de olhar para toda a administração pública e é por isso que eu defendo que tem de haver um refrescamento da administração pública. Negociar as reformas das pessoas que estão perto da reforma, mas atenção, atrair os jovens para a administração pública. Nós não vamos fazer nenhuma digitalização na administração pública em Portugal sem atrair jovens informáticos e engenheiros, sem valorizar as carreiras. A digitalização da administração pública é essencial, para ela ser mais ágil, ter maior capacidade de resposta e servir os cidadãos. Como todos nós sabemos, temos hoje uma administração pública que é muito orientada para pareceres. Quando as empresas apresentam um projeto, têm de passar por sete a oito organismos públicos, não é possível, a perda de energia e de tempo é estonteante. A administração é muito reativa, tem uma cultura burocrática enraizada, que é preciso mudar. A última revisão do Código Administrativo, de 2015, pressupõe claramente que quando há vários organismos públicos que são consultados, deve haver conferências deliberativas. Como mudar este paradigma cultural? Nós se não mudarmos, não vamos conseguir responder aos desafios com que estamos confrontados, não vamos conseguir executar os fundos europeus em toda a sua dimensão. O máximo que o país consegue na execução dos fundos, são dois mil e quinhentos a três mil milhões de euros por ano, nós vamos ter mais do dobro. Portanto, não vamos esperar, que com as mesmas práticas, os mesmos procedimentos, vamos ter resultados diferentes e esta é uma grande preocupação.

    A quarta prioridade, para mim, tem a ver com a política social, com o Estado social. Na minha visão, que é uma visão profundamente social-democrata, nós temos de combinar o dinamismo do mercado americano, com o Estado social europeu. Eu penso que esse é o caminho para o futuro. Os mercados autorregulados não funcionam necessariamente para assegurar o bem público, como as crises mais recentes vieram a demonstrar, portanto, a combinação virtuosa entre o Estado e o mercado, é vital. Não é ou um ou outro, é os dois na dose apropriada, para fazer funcionar o sistema produtivo. Ao nível das políticas sociais, com o nível de sofrimento que o país tem, nós não podemos esquecer que temos mais de 1 milhão de pessoas pobres em Portugal, que vivem em condições muito difíceis e isto vai acelerar com o desenvolvimento desta crise. Portanto, temos de ter respostas muito claras, desde a habitação aos apoios sociais, à reconfiguração de todas as políticas que existem, precisamos de uma grande política que envolva toda essa área. 

    Finalmente há duas áreas, ou duas prioridades que não queria deixar de mencionar, a reindustrialização ligada à reorganização das cadeias logísticas, com todos os aspetos que mencionei, que caracterizam a economia portuguesa, com as suas falhas e debilidades, mas também com as ferramentas e as valências que existem, que ligadas a políticas públicas - consistentes, sábias e profundas -, podem fazer a mudança. E, em último lugar, não posso deixar de mencionar, o território, a agricultura, a floresta. Nós temos mais de 70% do país, provavelmente, ocupado pela agricultura e pela floresta. A agricultura é uma das grandes respostas que o país encontrou ao longo desta crise. Na próxima crise, se as cadeias alimentares forem interrompidas, como é que nós vamos resistir? É por isso que a aposta na agricultura local e ecológica é muito importante. É por isso que, na agricultura industrial, tem que se revisitar o modelo, assegurar a sua sustentabilidade futura, definir os perímetros de rega, avaliar todas as valências para ela se desenvolver. Mas, atenção, respeitando a gestão dos recursos hídricos, a gestão da água e a qualidade dos solos. Nós temos hoje um problema da água no Alentejo, no Algarve, ele pode vir a piorar e é por isso que a gestão de todos os sistemas aquíferos, o seu mapeamento, o tratamento das águas residuais, é muito importante A aplicação da economia circular a todo este circuito será vital para impedirmos, no futuro, um problema muito significativo, em termos da água. Como escreveu um dia o filósofo francês Pascal “os rios são caminhos que andam”, e nós temos de cuidar dos nossos rios, desde logo o Guadiana, o Tejo, o Mondego, o Douro, mas todos os outros, para termos caminhos e andarmos para o futuro.

    Depois, a floresta é uma das grandes respostas à crise climática. Nós temos, no nosso país, partes de floresta como as ligadas ao montado, o sobreiro, que têm propriedades extraordinárias. Os montados são estabilizadores climáticos, ajudam a regular o ciclo hidrológico, minimizam o avanço da desertificação e, além de tudo, uma tonelada de cortiça que é produzida, significa o sequestro de 73 toneladas de CO2. Atenção, que as florestas são sumidouros naturais de CO2 e, portanto, revisitarmos o modelo de ocupação do território, identificar as áreas mais vulneráveis, termos uma combinação de uma floresta que seja capaz de lutar contra o avanço da desertificação, com um mosaico agrícola bem desenhado, pode ser o futuro para impedirmos as vulnerabilidades do território e lançarmos o país num ciclo diferente.

    Muito obrigado. 


  • João Ferreira do Amaral : O que, na nossa visão, se deve entender por “Afirmar Portugal no mundo”?

    O que, na nossa visão, se deve entender por “Afirmar Portugal no mundo”?




    Comecemos por dizer aquilo que não dever ser. Afirmar Portugal no mundo não significa


    preconizar uma qualquer atitude de rivalidade agressiva, nacionalista, militarista, xenófoba ou


    racista nem reduzir os objectivos nacionais a ganhar campeonatos internacionais de futebol.


    Significa, antes defender a diversidade e o intercâmbio pacífico entre todas as culturas do


    mundo e contribuir para essa diversidade desenvolvendo a originalidade histórica portuguesa naquilo que ela tem de melhor.


    No essencial, trata-se, afinal, de assumir, perante o mundo, com naturalidade e persistência a nossa identidade nacional, o que implica assumir a responsabilidade de ser português sem complexos em relação a um passado que, sendo de enorme riqueza tem, tal como em qualquer outro país, as suas luzes e trevas - umas e outras devendo ser conhecidas na sua real dimensão.


    Cada identidade nacional é uma perspectiva própria sobre o mundo que uma dada


    comunidade adopta, em intercâmbio com as outras comunidades nacionais do globo. Não é,


    não pode ser uma perspectiva estática. Está em permanente evolução e não é posta em causa – bem pelo contrário, como se tem visto um pouco por todo o lado – pela globalização. Ainda bem.


    Globalizar a economia, constatamos hoje, não significa eliminar as identidades nacionais, que


    são uma das bases dessa grande riqueza da Humanidade que é a diversidade e que são


    também o principal obstáculo ao individualismo do homo oeconomicus e à transformação de cidadãos em meros consumidores bem comportados e domesticados. Ser parte de uma comunidade nacional é, igualmente, assumir responsabilidades perante o futuro dessa


    comunidade, contribuindo dessa forma para o futuro de toda a Humanidade.


    Afirmar Portugal no mundo desdobra-se em dois eixos principais, que a nossa peculiar


    evolução histórica ligou indissoluvelmente: a projecção da identidade nacional através da sua cultura e a afirmação da independência do Estado, através do exercício da sua soberania.




    Projectar a identidade nacional


    Projectar a identidade nacional, significa trabalhar mais para alargar o papel da língua


    portuguesa no mundo, nomeadamente através do incremento do seu ensino, que tem sido


    insuficientemente apoiado; através também da criação de condições para um novo impulso da actividade editorial portuguesa (em papel e electrónica); do alargamento da acção dos órgãos de comunicação social de serviço público e do aumento do agora muito reduzido número de bolsas de ensino para estudantes dos países de expressão portuguesa.


    Passa também por desenvolver muito mais os laços históricos com povos, em particular do


    Oriente, cujos primeiros contactos permanentes com povos da Europa foram estabelecidos por Portugal.


    Significa ainda desenvolver em Portugal todas as formas de cultura, sem preocupação de


    discriminar entre formas tradicionais ou vanguardistas e com respeito pelos gostos de quem as produz e de quem as consome. Significa também assegurar um permanente contacto com a diáspora portuguesa através dos meios de comunicação social, da presença física frequente nas comunidades portuguesas de artistas e de estudiosos da realidade portuguesa, da actividade da TAP e outras empresas de transporte aéreo nacionais, da valorização da gastronomia nacional.




    Afirmar a independência do Estado




    Afirmar a independência do Estado não significa preconizar um isolamento em relação ao resto do mundo. Todos somos dependentes, ou melhor, interdependentes.


    Na nossa concepção, um país é tanto mais independente quanto mais instrumentos de acção política dispõe para gerir, ao serviço dos interesses nacionais definidos pelo seus cidadãos, as interdependências com os outros estados do mundo. A definição concreta dos objectivos nacionais e o accionamento dos instrumentos para os alcançar é o que denominamos de exercício da soberania.


    Por isso, a primeira condição para afirmar o estado português é a de manter sem vacilações o seu estatuto de estado soberano, como tal reconhecido pela comunidade internacional.


    Portugal não deve - quase diria não pode – abdicar desse estatuto a pretexto de integração política noutros espaços, nomeadamente no espaço europeu, a reboque de concepções falaciosas e fraudulentas de soberania (“partilha de soberania”, “soberania europeia”) que alguns tentam impor. Partilhar a soberania é um contra-senso: quando se partilha perde-se. 




    Substituir a soberania nacional por uma mítica soberania europeia é transformar soberania


    nacional em protectorado.


    Ainda neste âmbito e em particular, não é aceitável que o nosso País abdique de ter


    representação própria nas instituições internacionais, quaisquer que elas sejam, para deixar que outros o representem.




    Afirmar o Estado português exige também a definição de prioridades claras na acção externa e dos teatros geográficos onde essa acção se deve exercer; a efectivação duma gestão capaz do território terrestre (este profundamente desorganizado na actualidade) e também do território marítimo ao serviço dos nossos interesses, este tanto mais importante quanto se equaciona a extensão da plataforma continental.


    Exige a manutenção e reforço da coesão social, ou seja o funcionamento efectivo do Estado Social, nas suas diversas vertentes e a correcção permanente das excessivas desigualdades da distribuição da riqueza e do rendimento, em particular das mais gravosas, ou seja das que resultam da corrupção ou de outros processos ilegais. Exige também um poder político forte a que o poder económico se subordine.


    Os principais instrumentos necessários para exercer a soberania são bem conhecidos e em


    conjunto constituem o que se chama o aparelho de Estado. Forças armadas e forças de segurança, aparelho da Justiça, administração pública, participações do Estado em empresas estratégicas são porventura os mais importantes.


    Olhando para a situação actual destes instrumentos da acção política a primeira constatação que infelizmente temos que fazer é a da sua debilidade, fruto de uma degradação de décadas, o que põe em causa a afirmação do Estado português no mundo. Alguns dirão que não terá grande importância desce que projectemos a nossa identidade nacional. Este é um erro trágico. Sem se organizar em estado soberano o País definhará e reduzir-se-à a uma região europeia sem qualquer relevância, porque não terá forças para contrariar os naturais efeitos centralizadores da integração económica, financeira e monetária. Mas o que nos tem levado a aceitar a decadência do aparelho de Estado?


    Dos dois valores essenciais que deverão nortear a governação de um estado, o patriotismo e o sentido de estado, o que nos tem faltado principalmente é o segundo, ou seja a percepção de que os interesses nacionais devem prevalecer sobre os interesses partidários ou de grupo.


    Quando digo “nos tem faltado” refiro-me não só aos governantes que se sucederam ao longo do tempo como a todos nós, ofuscados como estivemos com os muitos milhões de euros que vieram da Europa, que nos levaram a pensar que poderíamos dispensar a definição de objectivos nacionais e que a protecção de Bruxelas podia substituir o aparelho estatal português.


    Neste aspecto a influência das ideias neoliberais nas elites portuguesas, felizmente menos actuante hoje, foi também um factor importante na degradação dos serviços públicos. Iludidos como estávamos não notámos sequer que ainda antes da crise de 2008 já a nossa economia estagnava e apresentávamos o menor crescimento de todas as economias da União Europeia


    com excepção da Itália, ao mesmo tempo que era galopante o ritmo de endividamento do País em relação ao exterior.


    Acordámos deste sonho com o desastre que foi o programa da Troika - em que afinal


    constatámos que aquilo em que queríamos acreditar não era verdade – e continuamos hoje angustiados com a pandemia e com a debilidade dos serviços públicos que todos os dias testemunhamos quer na fraqueza da sua acção concreta quer na permeabilidade em relação à corrupção.


    Qualquer análise séria sobre o presente e o futuro do País não pode deixar de chegar à


    conclusão que a prioridade das prioridades para Portugal é recapacitar o aparelho do Estado.


    Sem esse esforço não conseguiremos afirmar o Estado e consequentemente não afirmaremos


    Portugal no mundo, reduzindo-nos a uma mera região despovoada, envelhecida, atrasada e


    periférica no espaço europeu.Parágrafo Novo

  • Ricardo Paes Mamede: O Estado e o desenvolvimento português no século XXI

    O Estado e o desenvolvimento português no século XXI


    Introdução 

    Entre 2020 e 2030 Portugal irá receber da UE quase 60 mil milhões de euros em subsídios, o que inclui verbas das políticas estruturais e fundos de combate aos efeitos da pandemia do COVID-19. O valor não tem precedentes e suscitou um debate sobre a capacidade do Estado português para aproveitar da melhor forma aqueles recursos. 

    A este propósito, lia-se no editorial de um diário de referência de Setembro de 2020  a seguinte passagem: “No essencial, a fatia mais generosa das subvenções esperadas de Bruxelas tem como destino o Estado, o que equivale a dizer que o Governo aposta no reforço do nó que tem estado na origem dos problemas do país nas últimas décadas.” Mais adiante, prosseguia o texto: “Não se percebe, porque basta ver a história recente do país para entendermos que o seu maior problema não é a qualidade do Estado ou dos seus serviços: é a persistência de uma economia frágil e em, muitas áreas, anacrónica.”

    Num único parágrafo, fazem-se três afirmações sobre as quais importa reflectir. A primeira é sobre a dicotomia entre público/privado no debate sobre a utilização dos fundos. A segunda afirmação consiste na tese de que o investimento em serviços públicos é – volto a citar – “o nó que tem estado na origem dos problemas do país nas últimas décadas”. Por fim, afirma-se que o grande desafio do país é a persistência de uma economia frágil e que isso nada tem a ver com a qualidade do Estado.

    Nesta ou noutra forma, aquelas três afirmações têm sido repetidas à exaustão no debate público. Quanto mais são repetidas, menos parece haver necessidade de as justificar. No entanto, qualquer uma delas é questionável. Pior: por detrás de cada uma delas esconde-se com frequência o preconceito, a ignorância ou uma mistura dos dois. Analisemo-las, então, uma a uma.


    Público vs privado como questão central?

    Tal como o editorial citado, o debate político sobre os novos fundos da UE, no momento em que foram anunciados, centrou-se na sua distribuição entre sector público e privado. Como noutras ocasiões, os protagonistas da polémica deixam de lado questões sem os quais a discussão sobre a intervenção pública é vazia de sentido, tais como: Serão os investimentos previstos indispensáveis ou supérfluos? Será que permitem poupar recursos no futuro ou, pelo contrário, aumentam os compromissos financeiros do Estado? Os investimentos públicos previstos dão a resposta adequada aos desafios económicos, sociais e ambientais do país? Seria possível aumentar a parcela de fundos alocada às empresas, tendo presente que o apoio do Estado está sujeito às regras de concorrência da UE? Será expectável que as empresas privadas se constituam como motor de relançamento da economia num contexto de elevada incerteza como o actual?


    A resposta a estas e outras questões é decisiva para avaliarmos a bondade das decisões de governação. No entanto, o debate público passa quase sempre ao lado dos aspectos mais complexos da decisão política. Nos dias de hoje, nenhum jornal vende mais um exemplar quando opta por análises complexas em vez de afirmações simplistas. Nenhum partido político ganha mais um voto por trocar as frases feitas e o senso comum por argumentos elaborados que devem sustentar as opções. 

    A falta de debate público sustentado sobre as decisões de política pública constitui um problema das sociedades democráticas. A polémica em torno dos novos fundos europeus é apenas mais um exemplo deste problema.


    A dívida externa – e não o investimento público – como problema

    O editorial citado afirma também que o investimento em serviços públicos reforça “o nó que tem estado na origem dos problemas do país nas últimas décadas”. Esta afirmação é duplamente problemática. 

    Primeiro, porque dá a entender que em Portugal tem havido investimento a mais nos serviços públicos. É uma ideia estranha, quando sabemos que o investimento público atingiu os valores mais baixos de sempre na última década. Quando não faltam dados e relatórios, nacionais e internacionais, que alertam para a insuficiência de recursos em qualquer uma daquelas áreas. De uma forma mais geral, quando nenhuma evidência permite afirmar que o investimento em saúde, em educação e em apoio social constituiu um entrave ao desenvolvimento do país no passado recente.

    Na verdade, aquela afirmação alinha com uma tese muito difundida: a de que os problemas do país se devem à má gestão das finanças públicas até à chegada da troika. As causas da crise que atingiu Portugal e a zona euro em 2010-2012 têm sido estudadas e debatidas na academia desde então e são hoje muito poucos aqueles que insistem na tese do descontrolo das finanças públicas para a explicar .

    A crise da zona euro e das suas periferias constitui, antes de mais, um exemplo típico das implicações do fluxo internacional de capitais. Na década de 1990, a liberalização dos movimentos de capitais entre países, acompanhada da desregulação da actividade bancária, conduziram a um afluxo inédito de capitais aos países da periferia da União Europeia. A enorme entrada de capitais estimulou o consumo e o investimento baseados em crédito bancário em todos os sectores de actividade, em particular no imobiliário e na construção. 

    A economia cresceu muito nesse período, é certo. No entanto, como resultado desse padrão de crescimento, o sector privado endividou-se, os preços e os salários aumentaram e a estrutura produtiva alterou-se a favor de sectores menos expostos à concorrência externa. Assim começou e se desenvolveu o processo de acumulação de dívida externa – em Portugal e nos outros países periféricos da UE – e é aí que residem as origens da crise do euro.

    Na verdade, a noção de que a liberalização financeira e os fluxos de capital conduzem com frequência a ciclos de crescimento rápido seguido de períodos longos de baixo crescimento, não é uma novidade. Esta é, por exemplo, a história de várias economias da América Latina e da Ásia ao longo da década de noventa.

    No caso português, tal processo foi agravado por dois factores: primeiro, a participação no euro, vista de início pelos investidores internacionais como fonte de redução do risco, o que reforçou ainda mais os fluxos de capitais e a explosão de crédito no país. Outro factor decisivo para o rápido crescimento da dívida externa portuguesa foi a enorme exposição da indústria transformadora nacional à concorrência directa das economias emergentes (em particular a China e os chamados países de Visegrado), em resultado dos acordos comerciais firmados pela União Europeia e pelo seu alargamento a Leste.

    Não é possível entender o fraco desempenho da economia portuguesa desde a viragem do século sem ter em conta estes factores decisivos – a liberalização financeira, os choques comerciais e a participação no euro. Já o autor do editorial em causa, tal como muitos dos que intervêm no debate público em Portugal, prefere reduzir os problemas do país ao “investimento em serviços públicos”, segundo ele o “nó que tem estado na origem dos problemas do país nas últimas décadas”.


    O Estado como promotor das capacidades produtivas

    Centremos agora a nossa atenção na terceira afirmação do editorial, segundo a qual o maior problema do país não é a qualidade do Estado, mas antes a persistência de uma economia frágil.

    Implícita nesta afirmação está a tese de que a qualidade do Estado é irrelevante para o desenvolvimento das economias. Quando muito, espera-se do Estado que garanta as condições básicas de segurança, estabilidade e previsibilidade para o desenvolvimento da iniciativa privada.

    Se deixarmos de lado a qualidade da escrita e a sofisticação dos argumentos, e nos centrarmos apenas nas ideias-chave, o modo como aquela tese surge no debate público em Portugal, pouco se distingue dos termos em que tinha lugar há mais de duzentos anos, no contexto da independência americana.

    Ficou para a história dos Estados Unidos a polémica entre dois dos seus fundadores – Thomas Jefferson e Alexander Hamilton . Jefferson foi o principal autor da Declaração de Independência e mais tarde Presidente do país. Hamilton foi o principal autor dos famosos Federalist Papers (que constituem a mais importante fonte de interpretação da constituição americana); foi também o primeiro Secretário do Tesouro do país, sob a presidência de George Washington.

    Ambos foram inspirados pelo liberalismo político clássico, tributário do contratualismo de Thomas Hobbes e de John Locke. Segundo esta visão, cabe ao Estado garantir a lei e a ordem, a justiça e o respeito pelos direitos de propriedade. Para tal, o Estado tem de ser forte; mas deve também ser limitado e regulado. Forte para assegurar o respeito pelas regras estabelecidas, sem se deixar aprisionar por interesses sectoriais ou locais. Limitado, para que o âmbito da sua intervenção não ponha em causa as liberdades individuais. Regulado, por via de freios e contrapesos, para garantir que as decisões de quem governa estão alinhadas com o interesse colectivo e não com o de grupos específicos ou com o proveito próprio.

    Esta visão do liberalismo clássico é um elemento constitutivo de todas as democracias ocidentais, não apenas da americana. Traduz-se, como sabemos, na existência de restrições constitucionais ao poder executivo, na separação de poderes, num sistema independente de justiça, em meios de comunicação social livres, no direito à organização e mobilização cívica dos cidadãos, entre outros.

    No entanto, estes princípios gerais não nos dizem até onde deve ir o Estado na sua intervenção. A este nível, o contraste entre Jefferson e Hamilton é claro. 

    Para além de defender os princípios do liberalismo político clássico, Thomas Jefferson foi também influenciado pelo liberalismo económico de Adam Smith . Na senda de Smith, Jefferson defendia que a economia dos EUA deveria especializar-se naquilo que fazia melhor – o que na altura significava a produção agrícola. Tal como Smith, Jefferson via com maus olhos a possibilidade de o Estado interferir com o comércio internacional. Para Jefferson, como para Smith, a introdução de restrições à entrada de produtos manufacturados no país ou a tentativa de impulsionar a indústria nacional, constituíam um atentado à liberdade de iniciativa e levariam ao empobrecimento da nova nação.

    A este respeito, a posição de Alexander Hamilton não podia ser mais contrastante. Hamilton entendia que a prosperidade e o poder da nova nação passavam pela diversificação da sua estrutura produtiva, em particular pelo desenvolvimento da indústria transformadora. Considerava também que jamais essa transformação estrutural ocorreria pela mera acção das forças de mercado, pelo que a intervenção do Estado era indispensável. Por fim, Hamilton não via qualquer incompatibilidade entre a intervenção pública na promoção do desenvolvimento económico e os princípios do liberalismo político inscritos na Constituição americana. 

    As ideias de Hamilton sobre o que hoje designaríamos por Política Industrial foram sistematizadas no famoso Report on Manufactures, um plano que fez publicar em 1791 enquanto Secretário do Tesouro, e que contém os elementos essenciais da estratégia de desenvolvimento da economia americana. Entre esses elementos constavam medidas como: taxas aduaneiras proteccionistas; proibição da exportação de matérias-primas cruciais; subsídios à produção industrial; prémios e patentes para as invenções; regulação de standards; investimento público em infra-estruturas de transportes; entre outra formas de intervenção do Estado.

    O plano económico de Hamilton não só foi adoptado pelo governo dos EUA de então, como constituiu a referência principal da política económica americana nos 150 anos que se seguiram. No debate sobre o papel do Estado no desenvolvimento dos Estados Unidos foi pois Hamilton, e não Jefferson, quem venceu. 

    Na verdade, as ideias intervencionistas de Hamilton e a estratégia de desenvolvimento industrial dos EUA foram adoptadas e desenvolvidas nos últimos dois séculos em muitos outros contextos, tanto no plano da teoria económica como da prática política.  

    Friedrich List, o grande inspirador da estratégia de desenvolvimento da Alemanha na segunda metade do século XIX, sistematizou e aprofundou as ideias de Hamilton, opondo-se com o mesmo vigor às teses livre-cambistas e da minimização da intervenção do Estado. Hamilton e List inspiraram os economistas estruturalistas da América Latina, que defenderam e ajudaram a implementar estratégias de industrialização e de redução de dependência económica naqueles países nas décadas de quarenta e cinquenta do século XX. O nacionalismo económico e o estruturalismo, por sua vez, inspiraram as estratégias de transformação estrutural no Leste Asiático nas décadas de 1950, 1960 e 1970, que são hoje conhecidas na literatura como modelos de “Estado Desenvolvimentista”.  

    De uma forma geral, é difícil encontrar na história algum país onde o processo de transformação estrutural do tecido produtivo, que constitui a essência do desenvolvimento económico, não tenha sido impulsionado, ou até moldado, pelo Estado. E a importância do Estado não se limita às primeiras fases do desenvolvimento das economias nacionais. Os estudos académicos sobre a inovação e a mudança tecnológica têm mostrado que o dinamismo inovador das economias mais avançadas depende crucialmente da acção do Estado.  

    É certo que, numa sociedade capitalista de mercado, a empresa privada constitui o locus crucial da inovação, até porque dela depende para a sua sobrevivência . Mas a empresa inovadora não existe no vazio. A inovação resulta de um processo onde participam não apenas os vários indivíduos e departamentos que compõem a empresa, mas também vários actores externos com quem aqueles interagem. Incluem-se aqui outras empresas – como os clientes, os fornecedores, os concorrentes ou os consultores – mas também muitas outras entidades não empresariais – como as associações industriais, os centros tecnológicos, os centros de formação profissional, os laboratórios públicos, outros institutos de investigação científica e tecnológica, as universidades e as escolas profissionais, as entidades reguladoras e de certificação, entre outros. 

    Por outras palavras, a inovação empresarial – que é central no processo de desenvolvimento económico – depende crucialmente do contexto institucional em que tem lugar.

    Os estudiosos da inovação designam esse contexto por “sistema de inovação”, apontando o papel crucial que os Estados desempenham na constituição e na evolução permanente daqueles sistemas.  Em particular, cabe habitualmente ao Estado: providenciar e/ou financiar serviços de educação básica e avançada, formação profissional e investigação científica e tecnológica; assegurar a presença e o desenvolvimento de várias das instituições relevantes para a inovação; promover a difusão de conhecimentos e o desenvolvimento de competências no seio do sistema; promover a articulação entre actores, sempre que o desenvolvimento de novas actividades requer a acção coordenada de diversas entidades privadas e públicas; apoiar financeiramente iniciativas empresariais inovadoras, quando os mercados de capitais se revelam indisponíveis ou incapazes de o fazer; assumir a liderança da transformação tecnológica, em particular em domínios que envolvem elevados níveis de incerteza quanto à viabilidade técnica e comercial das novas soluções. 

    A história da tecnologia mostra-nos que o desenvolvimento de inovações mais radicais e com maiores impactos económicos quase sempre tem na base a intervenção do Estado, sob uma ou várias das formas referidas. Para além de protector e regulador dos direitos de propriedade e dos mercados, o Estado foi quase sempre guia, coordenador, estimulador e agente catalisador da transformação do tecido produtivo.

    Por tudo isto, faz muito pouco sentido insistir na dicotomia entre Estado e mercado quando falamos de desenvolvimento económico. No contexto de sociedades capitalistas, Estado e mercado estão sempre presentes e são sempre interdependentes. A questão não é tanto saber se o Estado deve intervir, a questão é como deve fazê-lo . Esta questão é menos fácil de responder do que pode parecer.


    O Estado que precisamos para a transformação estrutural da economia 

    Este debate é especialmente importante no contexto português. O padrão de especialização da economia portuguesa – historicamente assente em actividades de baixo valor acrescentado e baixa intensidade de conhecimento e tecnologia – constitui desde há muito um entrave ao desenvolvimento do país. Nas últimas duas décadas tornaram-se ainda mais evidentes os riscos associados a tal perfil de especialização. A enorme dependência tecnológica e energética da economia nacional faz com que cada período de crescimento económico seja acompanhado de maior endividamento externo. A importância dos custos para a competitividade de muitos sectores exportadores leva a uma pressão permanente sobre os salários, o que não só fomenta as desigualdades sociais como limita o crescimento da procura interna. A elevada exposição dos produtores nacionais à concorrência das economias emergentes, decorrente do padrão de especialização descrito, constitui um obstáculo ao desempenho das empresas industriais. A participação numa união monetária onde predominam países com estruturas produtivas mais avançadas, agrava as dificuldades dos sectores expostos à concorrência internacional devido à tendência para a sobrevalorização do euro. 

    Em suma, a transformação estrutural da economia portuguesa continua a ser uma questão central para as possibilidades de desenvolvimento do país a prazo. O que a história do desenvolvimento das nações nos ensina é que esse esforço de transformação estrutural exige uma intervenção eficaz do Estado. A questão é saber como se pode tornar a acção do Estado português mais eficaz na promoção do desenvolvimento do país no século XXI. Mais uma vez, a resposta a esta questão não é simples.

    O que funciona bem num dado contexto histórico e geográfico pode não resultar noutro. Os recursos, as competências, as instituições pré-existentes, os valores dominantes, as expectativas, o poder relativo dos diferentes intervenientes – tudo isto conta.

    É por isso que não há uma via única para o desenvolvimento. É por isso também que a decisão sobre o papel adequado do Estado no processo de desenvolvimento nunca é puramente técnica – é sempre feita com base em valores, em ideias, em convicções. Por outras palavras, as tensões inerentes às estratégias de desenvolvimento nunca poderão ser todas resolvidas num encontro de sábios ou de pessoas bem-intencionadas. Aqui como noutros domínios de governação, nada se substitui ao confronto – desejavelmente democrático e justo – entre projectos políticos alternativos. 

    Ainda assim, é possível identificar um conjunto de condições necessárias para que o Estado desempenhe um papel eficaz na promoção do desenvolvimento económico.

    Uma intervenção eficaz do Estado pressupõe a existência no seu seio de capacidade técnica, organizacional e política.  A capacidade técnica é necessária em todas os domínios da intervenção do Estado: nas diferentes áreas sectoriais; no planeamento, monitorização e avaliação de políticas; na auditoria; na regulação. A capacidade organizacional remete para a natureza dos processos de decisão, as oportunidades de aprendizagem institucional e os mecanismos de escrutínio. A capacidade política revela-se no assumir compromissos de médio e longo prazo, resistindo à pressão dos ciclos eleitorais e dos interesses instalados.

    Para aumentar a eficácia do Estado português na promoção das capacidades produtivas do país é necessário investir em todas estas dimensões – técnica, organizacional e política. 

    Num mundo complexo e exigente, a eficácia da acção do Estado depende crucialmente da qualificação e actualização permanente dos seus quadros técnicos e dirigentes. A este nível, a intervenção do Estado português enfrenta hoje vários desafios importantes , dos quais destaco três.

    O primeiro é o problema do envelhecimento. A idade média estimada dos trabalhadores da Administração Central é hoje superior a 50 anos (maior ainda se excluirmos as forças de segurança e defesa). Se em muitos casos isto permite tirar partido da experiência, em muitos outros limita a capacidade de actualização e de adaptação dos serviços.

    O segundo problema é a desmotivação. Desde a viragem do século que os funcionários do Estado foram tratados como variável de ajustamento na gestão das finanças públicas . Os salários reais dos funcionários públicos estão praticamente estagnados desde 2000. A maioria dos serviços trabalha hoje com menos pessoas para cumprir mais tarefas, fruto da contracção do número de quadros (tenhamos presente que só nos últimos 10 anos saíram da Administração Pública 45 mil trabalhadores, dos quais só cerca de 1/3 foram repostos). Ao nível simbólico, nenhum governo resistiu à tentação de estigmatizar os trabalhadores em funções públicas, procurando legitimar assim as medidas orçamentais que os penalizavam.

    Em parte, como resultado dos problemas anteriores, a maioria dos serviços públicos enfrenta hoje sérias dificuldades no recrutamento e na retenção de quadros qualificados. A maioria das saídas da função pública já não se deve à aposentação, mas à rescisão dos contractos. O governo abriu em 2019 um concurso para recrutamento de técnicos em áreas-chave, um concurso que fechou sem que tenham sido preenchidos todos os lugares, devido à inadequação dos candidatos. 

    Portugal precisa de um Estado capaz de apoiar activamente o processo de desenvolvimento económico – muito para lá da mera simplificação administrativa, da regulação dos mercados ou do funcionamento da justiça. Mas para fazê-lo é fundamental que prossiga uma política coerente e ambiciosa de gestão de pessoas. Segundo algumas estimativas, na próxima década o Estado português terá de recrutar 150 mil funcionários, isto apenas para substituir os que saem por aposentação de acordo com as regras em vigor. A forma como este processo será gerido pelo poder executivo será decisivo para o futuro do país.


    Conclusão

    Muitos se perguntam se alguma vez Portugal conseguirá construir um Estado capaz de apoiar o desenvolvimento do país num mundo cada vez mais complexo. A minha resposta é que a alternativa a um Estado capaz é um país e uma economia condenado à mediocridade. 

    Ao contrário do que sugeria o colunista de jornal referido no início, a qualidade do Estado e a persistência de uma economia frágil não são dois problemas distintos. Qualquer projecto de desenvolvimento de Portugal exige um projecto de capacitação do Estado. 



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     13  Ver D. Ferraz (2020), “A contratação de funcionários públicos, in R.P. Mamede e P.A. Silva (Coord.), O Estado da Nação e as Políticas Públicas 2020, Ipps-Iscte, Lisboa.

     14  Ver C. Madureira e M. Asensio (2020), “O desafio de mobilizar e requalificar a Administração Pública” in R.P. Mamede e P.A. Silva (Coord.), O Estado da Nação e as Políticas Públicas 2019, Ipps-Iscte, Lisboa.


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